It’s a fluke

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Valentina balançava as pernas enquanto tentava, pela milésima vez, ler a primeira página daquele livro da faculdade ‘O TRABALHO É PARA AMANHÃ, PORRA, QUAL É O MEU PROBLEMA?’. O vento estava começando a ficar forte, parecia o início de uma tempestade, mesmo tremendo, sorriu, achava incrível que a natureza conseguisse estar em um conflito igual ou maior ao dela. Aquela rodoviária, que antes parecia uma pequena e necessária ponte entre a vida que vivia e que queria viver parecia cada dia mais insuportável, ela não queria voltar, não mais. As ruas que antes eram repletas de suas histórias e amigos, pareciam mais apáticas do que nunca, ela queria o mundo, será que era tão difícil assim de entender? Pelo tom de voz de um amigo ao telefone, era. Desligou. Fechou o livro e abraçou os joelhos. Ainda tinha uma hora. Olhou para o céu, geralmente gostava de conversar com as estrelas, mesmo que soubesse o quão idiota devia parecer quando fazia isso.

Bernardo corria para não molhar suas partituras, tinha certeza que, dessa vez, acabara de escrever a música de sua vida, o que era estranho, visto que costumava encontrar pelo menos sete defeitos em cada uma delas. Devia ser seu dia de sorte. Bem que a moça do jornal avisou que as estrelas se alinhariam diferente essa noite, se o céu era diferente, porque não podia ser uma noite diferente também? Sorriu. Esse era o pensamento típico de cara ingênuo que o fazia ir para uma rodoviária, toda quinta, procurar histórias para escrever. Já tinha conhecido tanta gente nesse último ano que poderia ter feito mil discos e dois livros, mesmo assim, simplesmente não conseguia colocar as palavras no papel, estavam todas guardadas nele, presas. Talvez os pais tivessem razão, estava perdendo tempo, era hora de voltar para arquitetura, aparar a barba e esquecer essas besteiras. Mas, e se ele fosse feito de besteiras? Olhou para o céu, aparentemente igual e sorriu mais uma vez. Definitivamente, nada de diferente. Foi então que a viu, olhando para cima de forma tão intensa que, se pudesse pedir ao universo qualquer coisa, pediria para realizar o desejo dela. Suas coisas estavam no chão, as mãos seguravam um livro, as meias, acima do joelho, estavam meio tortas. Ela parecia perdida, lançando perguntas no ar para que qualquer pessoa respondesse, mesmo que, se não fosse por ele, estivesse completamente sozinha. Ele queria responder, mas, quando não estava tocando, raramente sabia a coisa certa a dizer. Ela precisava de respostas.

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O livro ainda estava em suas mãos. A página seguia marcando um. Os olhos estavam fechados. Uma melodia delicada e triste ecoou, era linda! Como ela queria dançar! Com os dias de merda, os amigos, as tardes jogadas fora, com seu quarto que não parecia mais seu, consigo. Dançar, até não pensar nos problemas, nas horas, no trânsito, na pilha de louça pra lavar. Dançou. Ele sentia que todas as quintas desses doze meses tinham valido a pena, só para vê-la dançar. Podia ser feito de besteiras se besteiras fossem assim. Ela abriu os olhos e o encontrou. Ele sorria, com as covinhas escondidas na barba e uma camiseta manchada. Ela, que costumava sempre saber o que dizer, ficou quieta. ‘Desculpa me meter no seu momento’ ‘Eu meio que precisava de intervenções’ ‘Na verdade, quem não precisa?’ Interviram. Ela cantou sua música preferida, mostrou as marcas de infância, bagunçou o cabelo dele, contou todos seus problemas, suas soluções, seus sonhos. Desenhou em seu braço. Ele sorria, com os olhos, para cada uma das maluquices dela, na verdade elas pareciam tão dele. Apostaram corrida de costas, gritaram mais alto que os trovões, abordaram as últimas pessoas que passavam desejando boa noite, abraçados com uma garrafa de vinho barata, se despediram do ônibus dela. Ele cantou a música preferida dela, ensinou como virar estrelinha, mostrou cada pedaço daquele lugar que era tão dele, despejou as mil histórias que tinha ouvido e que até hoje estavam trancadas. Fizeram uma fogueira, queimaram a melhor música dele. Depois dessa noite, ele teria sobre o que escrever por pelo menos uma carreira inteira, cada parte dela, desde o dente minusculamente lascado, até a tatuagem de beija-flor parecia poesia. Não era possível que aquela risada não fosse poesia.

Ele a abraçou. Correu com ela em suas costas, desceu a escada rolante que subia. Ela o puxou, deixou que suas mãos meio desengonçadas a guiassem, fingiu não conhecer metade daquele lugar que também era tão dela só para ver os olhos dele brilharem. Com a fala lenta e os olhos grudados nos dela, ele parecia fazer com que todas as coisas que ela costumava não ligar ficassem incríveis. Era ridículo. Fizeram uma cabana de casacos, escreveram uma lista de músicas alegres para darem más notícias como ‘atropelei seu gato, mas ainda te amo’, falaram muito, falaram pouco, falaram nada. A tempestade passou. O sol decidiu surgir, tímido, como se perguntasse se podia atrapalhar. Eles não se importavam. Tomaram café deitados no gramado. Trocaram bilhetes. Era hora de voltar pra casa. Os problemas ainda esperavam do ladinho da pilha de contas. Eles não se importavam. Ela tinha um livro pra ler e, finalmente, estava pronta. Ele tinha nove músicas para escrever, uma para cada letra do nome dela. Se beijaram, ela prometeu assistir o próximo show, ele prometeu comprar um vinho melhor. Sorriram e no três viraram as costas. No fim, a moça do jornal tinha razão, talvez fosse mesmo um dia de sorte.

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