O último dia

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A cabeça doía, o vestido da noite passada ainda estava no corpo, porque tinha saído com aquelas pessoas e com quais tinha voltado pra casa eram duas perguntas para serem feitas mais tarde, depois de um café quente e sem açúcar, ou de cereal com leite gelado, como ele tinha ensinado. Na época ela riu, mas nada na vida curava mais sua ressaca do que aquele cereal (e do que ele, mas também era muito cedo pra falar sobre isso).

Com a TV ligada para ter companhia naquele apartamento vazio, se pegou prestando atenção na notícia que dizia que um meteoro cairia sobre o país até o fim do dia. No meio de teorias e dos possíveis estragos, enquanto várias pessoas pareciam assustadas, planejando se esconder em seus porões, ela se sentia esperançosa. Não é que quisesse que o mundo acabasse hoje, mas a ideia de uma contagem regressiva fazia com que tudo parecesse mais vivo e tivesse mais valor.

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E então sentiu vontade de viver, não que essa vontade já não estivesse com ela desde sempre, aliás, esse foi uma das primeiras coisas que fizeram com que ele se apaixonasse, sua vontade de viver tudo que pudesse, mas e se hoje, depois de tantas histórias, fosse mesmo o fim?  Não podia arriscar o possível último momento. Era hora de levantar das almofadas jogadas no chão da sala que serviam de sofá, colocar uma roupa fresca e aproveitar o último dia.

Enquanto a água gelada do chuveiro caía sobre os cabelos pensou que se contasse a algum de seus amigos eles ririam, dizendo que provavelmente essa vontade de viver era culpa de sua alma apaixonada demais, sempre disseram que em um dia ela devia se apaixonar por umas trinta coisas diferentes, ela não calculava, porque se era paixão, devia ser despretensiosa e sequer deixá-la ser capaz de perder tempo contando. No fundo, precisava de alguém que não achasse maluquice, que, ao contrário, lhe mostrasse uma música nova e lhe puxasse pela rua. Sabia exatamente quem era essa pessoa e já que talvez o mundo virasse um grande nada hoje, não seria tão errado ligar pra ele, né?

Era mais um dia de trabalho, que devia ser provisório, enquanto escrevia seu livro, mas a ressaca da noite anterior não o deixaria chegar nem perto de um papel hoje. Enquanto tomava uma xícara forte de café sem açúcar, ainda surpreso por aquela coisa amarga não ser mais tão ruim e ter se tornado companhia em quase todas as manhãs ligou o rádio, achava a TV sem graça, preferia imaginar a ter a imagem pronta. Catava suas coisas, pegando a mochila, quando ouviu o destaque do dia, um meteoro atingiria a Terra e, resumindo, dependendo de como, todos podiam estar fodidos.

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Soltou a mochila, se estávamos realmente fodidos, o trabalho podia esperar, não iria ser o funcionário do mês mesmo. Decidiu resgatar sua xícara, quase cheia e tomar um café direito. Como ela sempre implicava pra ele fazer e como ele fez, durante meses enquanto ouviam aquele programa de músicas antigas, só pra sentirem que compartilhavam músicas que ninguém mais conhecia, ou lembrava. Será que ela sabia de hoje? Não pode não sorrir, é claro que devia saber, podia vê-la caminhando pelas almofadas da sala, colocando na sua balança imaginária se devia jogar tudo pro alto, ou se vestir para ir à faculdade. Geralmente, quando ela não sabia o que fazer, ele trapaceava e colocava ‘peso’ em algum dos lados, ela sorria e ia fazer o que quisesse fazer.

E se ela precisasse de um peso extra na balança hoje? Devia seguir a rotina ou mandar todos pro inferno e passar o dia como se fosse o último. Se esse fosse mesmo o último dia, o que ele mesmo deveria fazer? Se pegou com duas mãos balançando, entre duas opções, como ela faria e percebeu que precisava de alguém para desempatar. Só conhecia uma pessoa capaz de tal tarefa, gargalhou, se sentindo meio patético. Acabou se lembrando de sua voz, quando assistiram a um romance qualquer sobre um cara idiota que amava uma garota, dizendo ‘Ai Gabriel, todo cara de filme tem esse lado patético e mesmo assim pega várias gatas’.

Tirou a gravata, arremangou a camisa, olhou para Calvin, o cofre que os dois guardavam para emergências e o quebrou. Hoje era uma emergência, era o último dia, talvez nem fosse, mas era o dia deles. Abriu a porta rapidamente, dando de cara com uma garota, com o vestido – e o sorriso – que ele mais gostava no mundo e uma garrafa de vodka. As balanças pendiam para o mesmo lado. Ela sabia. Ele sabia. O mundo? Que fosse resolver seus próprios problemas, ou então se encontrar com os meteoros, já não importava mais.

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